Residência habitual ou domicílio habitual?

setembro 19, 2022 No comments exist

Será que o tão invocado conceito de “residência habitual” é realmente a expressão ou tradução mais correta do termo “habitual residence” tão usado nas convenções internacionais?

Será que não está faltando uma análise mais profunda em detrimento de uma cômoda e aparente tradução literal?

Residência habitual - Convenção da Haia de 1980

Quando surgiu o termo residência habitual?

Segundo uma relevante e recente nota de 2018 da Conferência da Haia sobre a residência habitual no âmbito da Convenção da Haia de 1993 sobre a adoção internacional, a noção de «residência habitual» é “o principal critério de conexão em todas as modernas Convenções da Haia relativas a proteção da infância“.

Nesta nota foi citado como exemplo o uso desta expressão na Convenção da Haia de 1980 (subtração internacional), de 1996 (proteção dos menores) e de 2007 (sobre os alimentos).

Porém, se observa que desde o primeiro tratado internacional relativo às crianças, a Convenção da Haia de 1902 sobre a tutela dos menores, a Conferência da Haia já adotava o conceito de «residência habitual» no seu texto legal.

Historicamente, mais em geral, também se observa o uso da «residência habitual» em acordos mais antigos, como o tratado bilateral entre a França e a Prussia de 1880 ou a Convenção da Haia de 1896 sobre o Processo Civil.

A expressão «residência habitual» resulta ser para muitos uma recente inovação jurídica, mas na realidade, a Conferência da Haia, que representa uma ampla comunidade internacional, já tinha reconhecido há mais de 100 anos atrás a sua superioridade qualitativa em comparação com outros critérios.

Para que serve o conceito de residência habitual?

A globalização e a redução dos custos para se deslocar levou a um grande fenomeno de migração entre as diversas nações do globo.

As elevadas diferenças entre esses países, cada uma com uma legislação algumas vezes até mesmo oposta às outras, amplificou a necessidade de identificar a relação entre as pessoas e as normas das diferentes jurisdições que as atingem.

Somente através deste fator de conexão entre as pessoas e os sistemas legais é possível determinar a lei aplicável a uma determinada situação da vida.

Formalmente, o ramo do direito internacional que estabelece esses critérios é, prevalentemente, o direito internacional privado (que necessita de outro capítulo para demonstrar a diferença entre o seu aparente significado literal e o correto significado atribuído pela doutrina).

Desde o período do império romano já se narrava a existência de leis capazes de resolver o conflito entre parte da população que viajava por territórios com governos que possuíam elevada autonomia legislativa. (para maiores detalhes históricos e conceituais, se aconselha as aulas do Professor Gustavo F. C. Monaco, disponibilizadas no YouTube).

Hoje, não é simples saber, por exemplo, qual deveria ser o modo correto para partilhar os bens de um cidadão brasileiro, casado com uma chinesa, residentes na Espanha e com testamento escrito na França, quando se encontrava ali hospitalizado antes de morrer.

Existem algumas situações da vida tão complexas que, mesmo passados anos e anos de evolução do direito em geral, a doutrina não consegue encontrar soluções coerentes, seja pela falta de clareza das normas vigentes quanto pelo conflito com outras normas imperativas.

Existem outras situações da vida onde o problema não é apenas saber qual direito pode ser aplicável, mas conhecer qual direito aplicável a pessoa poderá escolher entre aqueles disponíveis e/ou em qual jurisdição este direito poderá ser requerido com maior conveniência, o chamado forum shopping.

Portanto, para resolver os conflitos jurídicos entre diferentes Estados é necessário estabelecer um critério de ligação que pode ser o conceito da «residência habitual» ou outro mais pacificador.

Além disso, quanto mais aumentam as interações multinacionais, maior será a incidência dessas normais na vida de todos. Este é um tema de elevada relevância.

Existem outros critérios de resolução de conflitos sobre a lei aplicável?

Como citado, o direito internacional privado é aquele que normalmente se limita a estabelecer qual deve ser o direito material aplicável e em qual jurisdição este direito poderá ser reconhecido.

Para compreender o conceito de «residência habitual» é importante conhecer os critérios alternativos mais comumente usados para determinar a lei aplicável e a jurisdição competente, como, por exemplo: a residência, o domicílio e a nacionalidade.

O Brasil, antes da Grande Naturalização (que impôs unilateralmente, em 1889, a naturalização dos estrangeiros presentes no solo brasileiro), possuía um sistema vinculado prevalentemente à nacionalidade. Todos os imigrantes viviam nas suas respectivas colônias e aplicavam o direito do Estado de origem.

Sucessivamente, em um período histórico de ditadura (governo Vargas), o legislador nacional optou pela prevalência do critério do domicílio (1942), ignorando a tendência das Convenções produzidas na época de respeitar em certas situações a nacionalidade dos estrangeiros (ex. Código de Bustamante).

Assim foi mantido até hoje (ver crítica à esta inércia do Professor Dolinger).

Por exemplo, segundo a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a lei aplicável à personalidade é vinculada ao seu domicílio e a jurisdição brasileira pode ser invocada em base ao domicílio ou se a obrigação tiver que ser cumprida no país.

Em outras palavras, por exemplo, um cidadão estrangeiro domiciliado no exterior, pode requerer da justiça brasileira a aplicação do direito do seu país de origem no território brasileiro. O juiz brasileiro deverá “aprender”, inusitadamente, as 3 dimensões da lei estrangeira: o texto legal, a doutrina e a relativa jurisprudência.

Em outros países, como aqueles europeus, ao invés, muitas das leis aplicáveis à personalidade são vinculadas tanto a nacionalidade quanto ao domicílio.

Por exemplo, na Itália, a capacidade jurídica das pessoas é regulamentada pela nacionalidade, o testamento é regido pela lei do domicílio e o direito das crianças pelo domicílio habitual (lei italiana n. 218 de 31/05/1995). Em relação à jurisdição italiana, ela é admissível somente se o domicílio for na Itália, com a exclusão de condições especiais dispostas em tratados internacionais.

Portanto, não existe um critério universal para todas as situações, não existe um critério único para situações análogas e os conceitos de domicílio e nacionalidade são aqueles mais usados, mesmo que de forma não unívoca, nas diferentes jurisdições.

Qual é a definição de residência e domicílio?

Como será mostrado mais adiante, não é simples encontrar uma definição universal para residência e domicílio.

Etimologicamente, residência tem origem no latim, na palavra residère, que é composta pelo prefixo “re“, que significa repetição, e “sidère” (ou sedère), que significa sentar. Portanto, ao pé da letra, residência seria o local onde a pessoa se senta repetitivamente.

Domicílio, ao invés, tem origem na palavra latina “domicílium” que por sua vez muitos consideram ter origem na expressão “domus civis, que significa a casa/sede do cidadão. Em outras palavras, o significado jurídico de domicìlium é onde a pessoa possui a soma das suas coisas e dos seus interesses, onde exercita os seus direitos e deveres. 

Como se nota, «residência» possui um vínculo mais próximo com questões de fato e o «domicílio» possui um vínculo mais próximo com questões ligadas ao exercício de algum interesse (por exemplo, a atividade jurídica).

Levando em conta esses significados etimológicos, dá para imaginar que quando uma pessoa encaminha determinado pedido a uma autoridade, através do seu advogado, ela deveria declarar como residência o endereço onde mora habitualmente e, como domicílio, o endereço do advogado, pois é ele quem o está representando e que está administrando o exercício do seus direitos.

Se, ao invés, esta mesma pessoa está discutindo com a Receita Federal sobre a sua declaração de renda, ela irá declarar como endereço de residência a morada habitual e poderá eleger como domicílio o endereço do próprio contador. Por consequência, a Receita Federal enviará todas as eventuais comunicações a este contador (que recebeu mandado da pessoa para resolver diretamente o problema levantado).

Em base a etimologia da palavra residência e domicílio, estes deveriam ser os significados e usos universais. A «residência», o endereço principal onde se vive de fato, o «domicílio», o endereço eleito como mais adequado para resolver determinada questão.

Qual é a importância da residência e do domicílio?

A definição de residência e domicílio são essenciais na organização da vida social em geral.

É em base a eles que uma pessoa pode ou não ter acesso a muitos serviços públicos (saúde, educação, etc) e é em base a eles que são atribuídos os direitos e deveres.

Como se sabe, uma pessoa paga mais ou menos impostos em base ao local onde trabalha ou onde se encontram os próprios imóveis. É também possível requerer um documento apenas junto à entidade competente em uma específica area territorial, é possível ter o direito de fazer algo somente se morar em um território onde este algo foi legislado, etc.

A íntima ligação com a ordem pública destes conceitos muitas vezes colide com a vontade das pessoas de preferir manter a própria privacidade, considerando inoportuno que qualquer outro cidadão possa conhecer o seu endereço.

Devido a isto, muitos países possuem uma gestão extremamente diversificada dos dados dos próprios cidadãos. Existem nações onde é possível localizar facilmente qualquer pessoa e outras onde é necessária uma complexa e incerta investigação de tipo policial.

Qual é a definição legal de residência e domicílio no Brasil?

No Brasil, o Código Civil estabelece as seguintes definições de «domicílio» (e, talvez, de residência):

TÍTULO III
Do Domicílio

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.

Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.
Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem.

Art. 73. Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada.

Art. 74. Muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar.
Parágrafo único. A prova da intenção resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem.

Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.
Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.

Art. 78. Nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes
Código Civil/2002

Em outras palavras, em geral, o domicílio de uma pessoa é definido como a residência escolhida por ela como moradia fixa (art. 70 CC).

Porém, como a vida é mais complexa do que isto, pode acontecer das pessoas possuírem mais de uma residência e viverem nelas de uma forma alternada, dificultando a possível escolha daquela que poderia ser considerada como a predominante ou definitiva.

A solução dada pelo legislador brasileiro para esses casos específicos foi aquela de conceder liberdade total, ou seja, admitir a existência de um (contraditório) conceito de múltiplos domicílios, ou seja, de múltiplas residências escolhidas como definitivas (art. 71 CC).

Contraditório porque, conceitualmente, a palavra definitiva é especificada no dicionário como algo invariável, que permanece como está, portanto, quando uma pessoa vive em diversas residências, significa que nenhuma dessas residências possui um ânimo definitivo. Nesses casos, talvez é possível reconhecer a existência de um conjunto invariável de residências com ânimos definitivos, mas não existe endereço para conjuntos de endereços, essa possível classificação seria algo puramente fantasioso.

Para solucionar o caso ainda mais particular de uma pessoa que muda constantemente para uma nova casa, o legislador decidiu retirar a liberdade de escolha da pessoa (o seu “ânimo”) e o caráter habitual do domicílio para impor, como domicílio, qualquer residência onde a pessoa estiver efetivamente presente em um determinado momento (art. 73 CC).

Por fim, ao domicílio também foi atribuída uma função diferente daquela da habitação. Existe o domicílio relativo à própria profissão (art. 72 CC), à representação do incapaz, servidor público, miliar, preso (art. 76 CC) e às obrigações contratuais (art. 78 CC).

Estamos de frente a algo que parece extremamente caótico, como em uma cadeia de gambiarras jurídicas.

O domicílio originalmente deveria ser a única residência escolhida pela pessoa como estável, mas no final acaba sendo legalmente possível escolher mais de uma residência definitiva (o que representa, por consequência, ter mais de um domicílio) e/ou perder o poder de escolha, vendo o próprio domicílio sendo estabelecido por um terceiro e sem qualquer indagação sobre o ânimo da estadia observada.

É evidente a diferença desta realidade com o significado etimológico das palavras “residência” e “domicílio”.

O legislador parece ter usado “residência” como sinônimo (popular) de “morada”. Se desconhece onde a lei brasileira define o que é residência, mas o Código Civil, ao classificar a residência usando a expressão “ânimo definitivo”, trás consigo a dedução de que existe residência com ânimo não definitivo, ou seja, uma morada qualquer.

Mesmo não existindo uma definição na lei, muitos profissionais do direito afirmam que residência é a morada com ânimo definitivo como, por exemplo, o TJDFT. Se assim o for, residência e domicílio deveriam então ser considerados como sinônimos, o que transforma o art. 70 CC em uma aberração, como dizer que o significado de A (domicílio) seria um A (residência) com valor de A (“animo definitivo”). 

Em todo caso, a palavra “domicílio” nesta legislação nacional parece que tenta juntar, ao mesmo tempo, o significado etimológico de residência e de domicílio. Mudando a residência automaticamente se altera também o domicílio (art. 74 CC), ou seja, no caso específico da atribuição do domicílio “quanto as relações concernentes” a morada pessoal, parece subsistir a obrigação de ser idêntico à residência, mas isto nega a natural possibilidade da pessoa de poder atribuir a uma morada temporária o local no qual deseja exercitar os seus direitos e deveres.

Se admite que o domicílio possa ser diferente da residência somente para relações concernentes específicas funções que resultam extremamente limitadas (trabalho, incapaz, servidor público, militar e preso) ao real amplo âmbito do domicílio. Parece ser impossível, por exemplo, nomear como domicílio o endereço do próprio advogado em um processo. Todo legislador sempre cai em erro quando tenta descrever detalhadamente todos os casos possíveis e imagináveis de situações da vida, esta não é uma exceção.

Como se vê, é extramente complicado extrair um verdadeiro significado dos conceitos legais de residência e domicílio observando apenas os artigos acima citados.

Em outras leis nacionais também é possível observar usos e definições heterogêneas, o que comprova mais uma vez a falta de dedicação do legislador na manutenção de um certo grau de coerência.

Em alguns casos o domicílio se transforma magicamente em: sinonimo de morada; algo vinculado aos fatos e não a escolha; algo diferente do conceito de domiciliado; endereço principal; etc.

A residência se transforma magicamente em: sinonimo de morada (fixa ou temporária); sinonimo de domicílio; algo que não pode ser múltiplo; algo que deve ser único; etc.

Alguns exemplos:

Art. 7o A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.
(…)
§ 8o Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.
LINDB/1942
Art. 47. (…)
§ 3o A pedido do adotante, o novo registro poderá ser lavrado no Cartório do Registro Civil do Município de sua residência.

Art. 52. (…)
I – a pessoa ou casal estrangeiro, interessado em adotar criança ou adolescente brasileiro, deverá formular pedido de habilitação à adoção perante a Autoridade Central em matéria de adoção internacional no país de acolhida, assim entendido aquele onde está situada sua residência habitual;

Art. 85. Sem prévia e expressa autorização judicial, nenhuma criança ou adolescente nascido em território nacional poderá sair do País em companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior.

Art. 147. A competência será determinada:
I – pelo domicílio dos pais ou responsável;
II – pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável.
(…)
§ 2º A execução das medidas poderá ser delegada à autoridade competente da residência dos pais ou responsável, ou do local onde sediar-se a entidade que abrigar a criança ou adolescente.

Art. 156. A petição inicial indicará:
(…)
II – o nome, o estado civil, a profissão e a residência do requerente e do requerido, dispensada a qualificação em se tratando de pedido formulado por representante do Ministério Público;
(…)

Art. 158. (…)
§ 3o Quando, por 2 (duas) vezes, o oficial de justiça houver procurado o citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, informar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho do dia útil em que voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar, nos termos do art. 252 e seguintes da Lei n o 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) .
ECA/1990
Art. 22. Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador.

Art. 1.525. (…)
IV – declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos;

Art. 1.536. (…)
I – os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges;
II – os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento ou de morte, domicílio e residência atual dos pais;

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
(…)
II – vida em comum, no domicílio conjugal;

Art. 1.569. O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes.

Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Art. 1.732. O juiz nomeará tutor idôneo e residente no domicílio do menor: (…)

Art. 1.785. A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido. (….)
Código Civil/2002

Como são aplicados os conceitos de residência e domicílio no Brasil?

Como estabelecido no art. 74 CC, para definir o próprio domicílio deveria ser suficiente uma declaração pessoal, mas, costumeiramente, são requeridas provas suplementares. Foi criada até lei para este fim.

As provas normalmente aceitas são os contratos de serviços associados ao imóvel declarado, como as contas de luz, água, telefone, internet, etc. É necessário que o titular do contrato seja o próprio interessado ou um parente muito próximo.

Portanto, se uma pessoa planeja abrir uma conta no banco, basta apresentar as provas admitidas para ter o próprio endereço reconhecido como residência/domicílio.

No dia-a-dia, a (tentativa mal sucedida de) diferenciação entre domicílio e residência ocorre apenas no âmbito jurídico. Para todos os outros ambientes, todos os interesses giram ao redor do domicílio.

Popularmente se associa residência a qualquer morada (temporária ou fixa) e o domicílio apenas à residência principal.

O direito brasileiro parece sempre ter buscado usar o domicílio como critério qualificador das situações a serem legisladas. Apenas recentemente, provavelmente devido a publicação de novas Convenções, começou a se multiplicar o uso da palavra “residência” nos textos legais, o que parece mais uma simplificada tradução ao pé da letra das línguas estrangeiras (“residence“) do que o resultado de um estudo profundo daquilo que se decide interiorizar no âmbito doméstico.

Essa realidade de um sistema não centralizado, onde uma pessoa pode declarar um endereço diferente em lugares diferentes com extrema facilidade, parece ser favorável à própria privacidade, mas gera graves consequências.

O Estado perde a noção de onde se encontram realmente os próprios cidadãos, dificultando a administração dos próprios recursos e a aplicação da lei.

Por exemplo, no Brasil, muitos processos judiciais são extintos devido a impossibilidade de notificar o réu. Outro grave exemplo de distorção da realidade, que aflige o caso específico das crianças, é o fato de se desconhecer quem são aquelas que não estão frequentando a escola.

A realidade de aplicação do conceito de residência e domicílio apresenta problemáticas que amplificam ainda mais aquelas criadas inicialmente pela imprecisão das suas definições legais.

Qual é a definição legal de residência e domicílio nos demais países?

Como aqui o ponto focal são os tratados internacionais e como eles são escritos prevalentemente pelos países europeus, convém restringir a resposta a essa pergunta à uma exemplificação detalhada da realidade dos países europeus.

Com a elevada unificação jurídica existente no continente graças a proximidade e constituição de uma união formal entre esses países (a União Europeia), parece suficiente pegar como exemplo a legislação de um desses países.

Portanto, usando a Itália como exemplo, isto é o que estabelece a sua legislação:

Art. 43. (Domicílio e residência).
O domicílio de uma pessoa é um lugar onde esta estabeleceu a sede principal dos seus negócios e interesses.
A residência é o lugar onde a pessoa possui a morada habitual.

Art. 44. (Transferência da residência e do domicílio).
A transferência da residência não pode ser imposta por terceiros de boa fé, se não foi declarada nos modos prescritos pela lei.
Quando uma pessoa possui no mesmo lugar o domicílio e a residência e a transfere para outro lugar, aos terceiros de boa fé se considera transferido também o domicílio, se não foi feita uma especificação diferente no momento em que foi declarada a transferência da residência.

Art. 45. Domicílio dos cônjuges, do menor e do interditado.
Cada um dos cônjuges possui o próprio domicílio no lugar onde estabeleceu a sede principal dos próprios negócios ou interesses.
O menor possui o domicílio no lugar de residência da família ou naquele do tutor. Se os genitores são separados ou o casamento foi anulado ou dissolvido ou cessaram os efeitos civis ou de qualquer forma não possuem a mesma residência, o menor possui o domicílio do genitor com o qual convive.
O interditado possui o domicílio do tutor.

Art. 47 (Eleição do domicílio).
É possível eleger domicílio especial para determinados atos ou negócios.
Esta eleição deve ser feita expressamente por escrito.
Código Civil italiano/1942

Como dá para perceber, existe uma elevada convergência entre o significado legal de residência e de domicílio com o significado etimológico anteriormente citado.

Diferentemente do Brasil, não é possível ter mais de uma residência ou morada habitual, assim como não é possível ter mais de um domicílio em relação aos efeitos ligados a habitação ou a outros interesses.

Além disso, a residência é considerada um elemento de elevado interesse para os terceiros e, portanto, se requer uma formalização pública e de elevada precisão. Afinal, em um estado de direito, é essencial permitir que qualquer pessoa possa conhecer a residência de outra, pois dela dependem os direitos e deveres em geral.

No caso do domicílio, quando este for vinculado a relações diferentes da moradia, existe uma maior liberdade de escolha. É possível eleger domicílios diferentes para cada negócio e não subsiste uma formalidade de cunho público como no caso da residência.

Não parece ser necessário fazer outras considerações pois a legislação é extremamente clara e não apresenta qualquer contradição consigo mesma.

Para situações da vida não corriqueiras a legislação estabeleceu a seguinte regra:

Art. 2. É obrigatório para todos pedir para si e para as pessoas sobre as quais exercita o poder familiar ou a tutela, a inscrição no registro dos residentes da cidade onde mora habitualmente (…)
A ausência temporária da cidade da morada habitual não produz efeitos sobre o reconhecimento da residência.
Para os fins da obrigação do primeiro parágrafo, a pessoa que não possui morada fixa é considerada residente na cidade onde estabeleceu o próprio domicílio. (…). Na falta de domicílio, se considera residente na cidade de nascimento. (…)
Lei n. 1228 / 24/12/1954

Procurando estender de forma superficial a análise a outras regiões importantes na redação das convenções internacionais, parece relevante observar a definição de residência e domicílio nos EUA e/ou Canadá (ambos participam constantemente nos trabalhos da Conferência da Haia).

Nos EUA esta é uma pesquisa complexa pois cada Estado possui uma elevada autonomia e estes conceitos de residência e/ou domicílio não parecem ter recebido uma definição legal em nenhum destes Estados. O que se observa é a reunião de decisões judiciais como aquelas juntadas pelo Law Insider.

Nessas decisões, é possível reparar uma grande proximidade com a definição legal europeia. A palavra “residência legal” ou simplesmente “residência” é a única morada habitual e pode ser diferente do domicílio. Na Europa, “residência” possui prevalentemente um valor legal, nunca é usada como sinonimo de morada.

Já no Canadá a particularidade é o uso de um critério também válido em geral na Europa, ou seja, que um dos fatores objetivos que identificam a “residência” é a estadia em um determinado local por mais de 6 meses.

Como são aplicados os conceitos de residência e domicílio nos outros países ?

Talvez o modo mais linear para compreender o que acontece no exterior é narrar passo-a-passo o que acontece com, por exemplo, um cidadão estrangeiro que se muda para um país europeu com legislação “tradicional” como a Itália.

Logo ao chegar, o imigrante (autorizado a residir legalmente na Itália) descobre que é obrigado a fazer o pedido de residência pois somente assim terá direito a assistência médica, subsídios, carteira de identidade, etc.

O primeiro passo é ir para a prefeitura competente e declarar estar morando em determinado local, com um determinado título (se aluguel, propriedade, comodato, etc), junto com eventuais parentes, etc.

Sucessivamente, um funcionário da prefeitura se apresentará no endereço indicado para verificar se a pessoa realmente ali mora, se as condições mínimas de higiene são respeitas, se tem o próprio nome no interfone, se tem um armário com as próprias roupas/coisas, qual é a sua cama, etc.

Com a confirmação da residência, a pessoa resulta inserita no registro dos residentes da prefeitura e qualquer outro cidadão pode ter acesso a essa informação, bastando informar poucos dados pessoais como, por exemplo, o ano de nascimento.

Desta forma, no caso de uma simples multa de trânsito, as autoridades podem verificar o endereço de residência para o envio da notificação. No caso de uma vacinação obrigatória, a autoridade médica verifica quais são as crianças residentes não vacinadas e envia o relativo aviso à casa das mesmas. São quase infinitos os exemplos da importância deste registro.

Em relação as alterações da vida, quando uma pessoa possui, por exemplo, a necessidade de ir para outra cidade estudar, ela mantém a propria residência no endereço original, mas declara como domicílio o endereço onde se encontra temporariamente devido os estudos. Assim, um estudante da ilha da Sardegna que alugou uma casa em Milano para poder estudar, por não ter a sua residência alterada, goza dos benefícios dos residentes da Sardegna como, por exemplo, os elevados descontos na compra das passagens aéreas ou o acesso a bolsas de estudo de maior valor por ser estudante que mora em outra cidade.

Se um italiano decide ao invés expatriar para o Brasil, ele tem a obrigação de se apresentar no consulado italiano de competência e declarar o endereço brasileiro. Desta forma, o seu endereço na prefeitura italiana onde residia será atualizado e inserido na lista dos italianos que moram no exterior. Assim, receberá, por exemplo, todas as comunicações que o Estado italiano envia para os expatriados (como, por exemplo, a cédula para votar).

Declarar a própria residência é algo importante e é um dever mantê-la sempre atualizada. É possível requerer um certificado de residência assim como um histórico com todas as mudanças de endereço declaradas no passado.

Todos os parentes residentes no mesmo endereço formam um outro registro, que se pode traduzir como “status do núcleo familiar”, onde se indica o grau de parentesco com o componente familiar que se deve considerar como principal responsável pelo sustentamento econômico deste núcleo.

Algumas vezes a escolha da residência acaba sendo usada para alcançar benefícios não legítimos, como, por exemplo, pagar menos impostos. Para contrastar esses fenômenos, a autoridade judicial pode ser invocada para determinar qual é a residência efetiva de um cidadão.

Um dos critérios legais objetivos é aquele de estabelecer que toda morada que supera os 6 meses em um ano solar deve ser avaliada como aquela que corresponde a sua residência “oficial”, desde que não existam outros motivos objetivos ou subjetivos que afastem o seu ânimo de fixação, como as já citadas exigências de estudo ou outras, como, necessidades médicas, trabalhistas, familiares, etc.

Não é possível indicar múltiplos endereços de residência e nem múltiplos endereços de domicílio para um mesmo negócio.

Non dia-a-dia, tudo aquilo que é relativo à morada habitual (critérios de leis, procedimentos, subsídios, etc) se baseia na residência declarada na prefeitura. Raramente se requer o domicílio e raramente as pessoas fazem questão de registrar na prefeitura um endereço de domicílio diferente daquele de residência.  

O domicílio não requer muitas formalidades além da propria simples declaração no relativo ato que se deseja realizar. Por exemplo, em um processo judicial, se declara como domicílio o endereço do advogado, para assim indicar ao tribunal que todas as notificações e comunicações deverão ser encaminhadas a este.

Aqueles que não possuem ou não declaram uma residência fixa (por exemplo, morador de rua), a prefeitura deve registrar também a sua presença no território. Segundo a legislação, o endereço de registro da pessoa será um qualquer vinculado à prefeitura.

Em resumo, qual é a diferença entre o Brasil e outros países em relação ao conceito de residência e domicílio?

Está é a realidade na Europa (que é formada pela maioria dos países que participam historicamente à Conferência da Haia):

  • a palavra «residência» é usada como endereço com “ânimo definitivo”;
  • o «domicílio» é o endereço temporário e/ou efetivo, sem relevância legal;
  • «residência» e «domicílio» não possuem vínculos entre si, mas cada um deve respeitar rígidos critérios de tipo objetivo e subjetivo;
  • a «residência» e «domicílio» são sempre únicos;
  • a «residência» e «domicílio» são sempre declarados pelos interessados ou pelos seus representantes;
  • a situação habitacional é um ato público e deve ser declarada em um registro centralizado e após a verificação da autoridade competente (que inclui o respeito de outras regras habitacionais).

Está é a realidade brasileira:

  • a palavra «residência» é usada como endereço temporário ou fixo, sem relevância legal;
  • o «domicílio» é o endereço com “ânimo definitivo”;
  • se a «residência» muda também o «domicílio» deve ser alterado e não existem critérios objetivos rígidos para determinar a retidão do “ânimo definitivo”;
  • a «residência» e «domicílio» podem ser múltiplos;
  • a «residência» e o «domicílio» podem ser estabelecidos por autoridades diferentes do interessado;
  • a situação habitacional é uma declaração voluntária, não existe um registro centralizado e basta apresentar indícios documentais para provar tal declaração.

Como se observa, as diferenças são extremas, quase tudo é o oposto do outro.

Porque as leis nacionais de direito internacional privado não são adequadas à solução de alguns conflitos jurisdicionais?

Como foi indicado anteriormente, cada país possui as suas regras de direito internacional privado para resolver os conflitos sobre a lei aplicável.

Algumas vezes uma lei fornecerá como solução a lei de outro Estado que poderá remandar para terceiros (que por sua vez podem encaminhar a outros mais) ou retornar, gerando potenciais situações de impasse.

Como se não bastasse, cada uma dessas leis estrangeiras pode usar critérios com expressões literais que podem parecer possuir um significado claro, mas que na realidade podem ser completamente divergentes.

A solução para este caos é a instituição de acordos multilaterais que uniformizam o direito privado internacional.

Para este fim, a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado produz convenções concordadas com os maiores especialistas que representam as suas próprias nações.

Aqui se concorda com o Prof. Dolinger que considerada as Convenções da Haia como Direito Internacional Privado uniformizado. O Direito Internacional Público não tem a sua origem apenas no aspecto multinacional, como atualmente considera a jurisprudência brasileira, mas em fatores mais amplos.

De qualquer forma, apenas a internacionalização de uma lei ainda não é suficiente para torná-la universal. Por coerência, os seus dispositivos também devem ser universais.

Se um tratado internacional levantar critérios que são regulamentados diferentemente pela lei interna dos países firmatários, ele se transformará em letra morta.

A solução para todo conflito internacional no âmbito do direito internacional privado é a aplicação de normas com critérios plenamente autônomos.

Por essas razões, critérios como domicílio e/ou residência devem ser autônomos, devem avaliar específicos elementos da situação da vida em discussão e de forma homogênea.

Porque atualmente prevalece o critério da residência habitual em relação às crianças?

Os procedimentos judiciais que envolvem as crianças são extremamente delicados e relevantes para a sua vida presente e futura.

A ciência já provou de diversas formas que a estabilidade psicologica do adulto e/ou as suas capacidades cognitivas dependem muito dos estímulos recebidos na sua infância.

Além disso, as crianças não possuem maturidade e conhecimento suficiente para poder exprimir as próprias vontades.

Portanto, a lei aplicável à vida de uma criança, por princípio, não pode ter os mesmos critérios daquela dos adultos.

Se para os adultos podem ser plausíveis elementos como o domicílio ou a nacionalidade nas relações da vida que estes levam ou são levados a enfrentar junto ao poder judiciário, para as crianças, não são adequados.

O bem-estar de uma criança deve ser tutelado no local onde se encontra e com a máxima velocidade e/ou prioridade.

Para alcançar este elevado grau de proteção deve ser considerado como irrilevante a sua nacionalidade ou as formalidades aplicáveis à definição do seu domicílio/residência.

Em primeira instância se deve aplicar as medidas de proteção da lei do local onde se encontra e somente depois estabelecer qual é a lei que deverá ser aplicada em relação ao seu futuro.

Cabe aqui lembrar um velho e sábio ensinamento da comunidade internacional:

“os menores não devem ser considerados propriedade dos seus pais, mas devem ser reconhecidos como indivíduos com direitos e necessidades próprias”
Recomendação 874 (1979) da assembleia parlamentar do Conselho Europeu

Em coerência com essa regra, foi instituído o princípio do superior interesse da criança, que posiciona o interesse da criança acima daquele dos seus pais ou de outros adultos.

Portanto, se convencionou que o critério da lei aplicável a uma criança deve ser aquele que hoje é nomeado como «residência habitual», algo que os adultos não podem tentar alterar artificialmente.

Muitos acreditam que o “habitual” se refere a uma proteção dos hábitos da criança, mas isto é apenas uma errônea dedução consequente à falta de estudos mais profundos sobre o tema.

Toda criança possui a priori elevada facilidade de adaptação, seria uma aberrante contradição estabelecer que todo e qualquer hábito não deve ser alterado somente porque isso poderia traumatizá-la.

O termo habitual é a palavra que se encontrou para vincular o critério do seu ambiente social à elementos vinculados aos fatos e não puramente às formalidades legais dos conceitos de domicílio/residência ou nacionalidade.

Se busca assim o juízo mais próximo à realidade da criança (tanto em nível nacional quanto internacional) pois é ele que terá melhores condições técnicas para investigar a sua situação familiar e cultural.

Qual é exatamente a definição internacional de residência habitual?

A Convenção da Haia de 1980, a mais antiga ainda em vigor (e complementada pela Convenção da Haia de 1996) sobre os interesses dos menores, no seu Relatório Explicativo, esclarece pouco sobre o conceito de residência habitual:

Não nos deteremos aqui sobre o conceito de residência habitual: se trata de fato de um conceito familiar a Conferência da Haia, no qual se entende como um conceito puro de fato que difere em particular do conceito de domicilio.
Relatório Explicativo da Convenção da Haia de 1980 – p.66

Maiores indícios são encontrados no Guia de Boas Práticas sobre a Implementação e Funcionamento da Convenção da Haia de 1993:

a residência habitual é geralmente considerada como um conceito de fato que denota o país que se transformou no centro da vida familiar e profissional de um individuo
Guia de Boas Práticas sobre a Implementação e Funcionamento da Convenção da Haia de 1993 – p.490

Importantes elementos são elencados na Nota da Conferência da Haia sobre a residência habitual anteriormente citada:

Para estabelecer se os futuros pais adotivos, ou em alguns casos a criança, têm a sua residência habitual para os efeitos da Convenção em um determinado Estado, pode-se considerar a seguinte lista não exaustiva de fatores (na medida em que sejam pertinentes ao caso concreto):
– há quanto tempo mora no Estado;
– as condições da sua estadia no Estado (por exemplo, em alguns casos, se possuem uma situação imigratória regular, uma permissão de residência ou de trabalho adequados);
– as razões pelas quais se estabeleceram no Estado;
– as intenções em relação à residência (por exemplo, quanto tempo pretendem morar lá);
– o seu local de trabalho ou onde possui o principal centro de suas atividades profissionais;
– os vínculos com o Estado, incluindo laços pessoais, sociais culturais e econômicos (ex. relação sociais e familiares, onde a criança frequenta a escola, competências linguísticas);
qualquer outro tipo de vínculo com o Estado em que vivem (por exemplo, interesses econômicos, propriedades de bens móveis ou imóveis, conexões fiscais, assistência médica, contas bancárias);
– e qualquer outra conexão pertinente com outros Estados.
Note on Habitual Residence and the Scope of the 1993 Hague Convention – p.70

Outra fonte de máximo respaldo é a Corte Europeia que desde 2003 julga o conceito de residência habitual que foi legislado no Regulamento europeu n. 2200 (“Bruxellas II bis”) relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

Assim esta Corte se expressou em uma importante decisão que trouxe um ótimo resumo de outras decisões e que detalhou ainda mais algumas questões:

“Não havendo, neste regulamento, uma definição do conceito de «residência habitual» da criança ou uma remissão para o direito dos Estados‑Membros a este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente que se trata de um conceito autônomo de direito da União, que deve ser interpretado à luz do contexto das disposições que o mencionam e dos objetivos do Regulamento n.o 2201/2003, nomeadamente o que resulta do seu considerando 12, de acordo com o qual as regras de competência nele estabelecidas são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade (Acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.os 31, 34 e 35; de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 44 a 46; de 9 de outubro de 2014, C, C‑376/14 PPU, EU:C:2014:2268, n.o 50; e de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 40).”

“Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a determinação da residência habitual da criança deve ser feita com base num conjunto de circunstâncias de facto específicas de cada caso concreto. Além da presença física da criança no território de um Estado‑Membro, devem ser tidos em consideração outros fatores suscetíveis de indicar que esta presença não tem de modo nenhum caráter temporário ou ocasional e traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.os 37 e 38; de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 44, 47 a 49; e de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.os 42 e 43).”

“Neste contexto, há que atender, em geral, a factores como a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência da criança no território dos diferentes Estados‑Membros em causa, nos quais a criança esteve presente durante a sua vida, o lugar e as condições da sua escolarização bem como as relações familiares e sociais da criança nos referidos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 39).”

“Por outro lado, quando a criança não esteja em idade escolar, a fortiori, quando se trata de uma criança em idade lactente, as circunstâncias que envolvem a pessoa ou as pessoas de referência com quem a criança vive, que têm a sua guarda efetiva e que cuidam dela diariamente — em regra, os seus progenitores —, têm uma importância especial para determinar o lugar onde se situa o centro da sua vida. Com efeito, o Tribunal de Justiça salientou que o ambiente dessa criança é essencialmente familiar, determinado por essa pessoa ou essas pessoas, e que ela partilha necessariamente o ambiente social e familiar do círculo de pessoas de que depende (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 53 a 55).

“Deste modo, no caso em que uma criança em idade lactente vive diariamente com os seus progenitores, importa determinar, nomeadamente, o lugar onde estes vivem de forma estável e onde estão integrados num ambiente social e familiar. A este respeito, há que ter em conta fatores como a duração, a regularidade, as condições e as razões da sua permanência no território dos diferentes Estados‑Membros, bem como as relações familiares e sociais aí existentes entre estes e a criança (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 55 e 56).

“Por último, a intenção de os progenitores se instalarem com a criança num dado Estado‑Membro, quando é expressa através de medidas tangíveis, também pode ser tomada em consideração para determinar o lugar da sua residência habitual (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 40; de 9 de outubro de 2014, C, C‑376/14 PPU, EU:C:2014:2268, n.o 52; e de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 46).”

“Por outro lado, embora seja certo que, quando os seus progenitores não vivem juntos, o ambiente familiar de uma criança em idade lactente é, em larga medida, determinado pelo progenitor com quem vive diariamente, o outro progenitor também faz parte deste ambiente, desde que a criança continue a ter contactos regulares com este. Deste modo, existindo tal relação, deve a mesma ser tomada em consideração para determinar o lugar onde se situa o centro da vida da criança.”

“Ora, importa precisar que períodos em que, no passado, uma criança esteve com os seus progenitores no território de um Estado‑Membro no âmbito de férias correspondem, em princípio, a interrupções ocasionais e temporárias do curso normal das suas vidas. Estes períodos não podem assim, em regra, constituir circunstâncias determinantes no contexto da apreciação do lugar da residência habitual da criança. O facto de, no presente caso, estes períodos terem durado várias semanas, ou até alguns meses, não põe, em si mesmo, em causa a pertinência destas considerações. Neste contexto, também não é determinante que HR seja originária do Estado‑Membro em questão e que, a este título, a criança partilhe da cultura deste Estado — o que é nomeadamente comprovado pela língua em que principalmente se exprime e pelo facto de aí ter sido batizada — e mantenha relações com os membros da sua família que residem no referido Estado.”

“É certo que, conforme HR e o Governo polaco sublinharam nas suas observações, o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, (C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.o 55), declarou que as origens geográficas e familiares do progenitor que exerce a guarda da criança podem entrar em linha de conta para determinar a integração num ambiente social e familiar do referido progenitor e, por dedução, a da criança. Contudo, conforme se recordou no n.o 41 do presente acórdão, a determinação da residência habitual da criança, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, implica que se proceda a uma análise global das circunstâncias específicas de cada caso concreto. Impõe‑se assim uma atitude de prudência na transposição para um processo das indicações dadas no âmbito de outro processo.”

“Por outro lado, no que se refere aos vínculos de índole cultural de uma criança com o Estado‑Membro de que os seus progenitores são originários, é certo que estes vínculos podem revelar a existência de uma certa proximidade entre a criança e o Estado‑Membro em questão, que corresponde, em substância, a uma relação de nacionalidade. Os conhecimentos linguísticos da criança e a sua nacionalidade podem também constituir, eventualmente, um indício do lugar onde a criança reside habitualmente (v., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 39). Contudo, no Regulamento n.o 2201/2003, em matéria de responsabilidade parental, o legislador da União só reconheceu um valor limitado a semelhantes considerações. Em especial, nos termos deste regulamento, a competência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de que a criança é nacional só pode prevalecer sobre a dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da sua residência habitual nas circunstâncias e nas condições limitativamente enumeradas nos artigos 12.o e 15.o do referido regulamento.”

“Esta opção resulta de uma certa conceção do superior interesse da criança. Com efeito, o legislador da União considera que os órgãos jurisdicionais geograficamente próximos da residência habitual da criança são geralmente os mais bem colocados para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança (v., neste sentido, Acórdãos de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 36; de 15 de julho de 2010, Purrucker, C‑256/09, EU:C:2010:437, n.o 91; e de 15 de fevereiro de 2017, W e V, C‑499/15, EU:C:2017:118, n.os 51 e 52).

“Assim, para interpretar o conceito de «residência habitual» da criança, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, não se pode atribuir uma importância preponderante aos vínculos de índole cultural da criança ou à sua nacionalidade em detrimento de considerações geográficas objetivas, sob pena de se desrespeitar a intenção do legislador da União.

“Por último, a circunstância de o progenitor que, na prática, exerce a guarda da criança ter, eventualmente, a intenção de regressar com a criança ao Estado‑Membro de que este progenitor é originário, para neste residir, não pode ser decisiva num contexto como o que está em causa no processo principal. Conforme foi recordado no n.o 46 do presente acórdão, é certo que a intenção dos progenitores é suscetível de constituir um fator pertinente para determinar o lugar onde se situa a residência habitual da criança. Contudo, por um lado, a circunstância de uma criança estar, na prática, à guarda de um dos seus progenitores não significa que a intenção parental se resume, em todos os casos, apenas à vontade deste progenitor. Com efeito, sendo os dois progenitores titulares do direito de guarda da criança, na aceção do artigo 2.o, ponto 9, do Regulamento n.o 2201/2003, e pretendendo os dois exercer este direito, deve ser tomada em consideração a vontade de cada um deles.

Por outro lado, seja como for, uma vez que a determinação da residência habitual da criança, na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, assenta essencialmente em circunstâncias objetivas, a intenção dos progenitores não é, em princípio, decisiva, em si mesma, a este respeito. Trata‑se apenas, eventualmente, de um indício suscetível de completar um conjunto de elementos concordantes (v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.os 47 e 51).

“Atendendo a todas as considerações que precedem, há que responder às questões submetidas que o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que a residência habitual da criança, na aceção deste regulamento, corresponde ao lugar onde, na prática, se situa o centro da sua vida. Cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar onde se situava esse centro no momento em que foi apresentado o pedido respeitante à responsabilidade parental relativa à criança, com base num conjunto de elementos de facto concordantes.

A este respeito, num processo como o que está em causa no processo principal, à luz dos factos julgados assentes pelo órgão jurisdicional nacional, constituem, em conjunto, circunstâncias determinantes:

– o facto de a criança ter residido, desde o seu nascimento e até à separação dos seus progenitores, em geral com estes num determinado lugar;

– a circunstância de o progenitor que, na prática, exerce, desde a separação do casal, a guarda da criança continuar a viver diariamente com esta naquele lugar e aí exercer a sua atividade profissional, que se inscreve no quadro de uma relação de trabalho celebrada por tempo indeterminado; e

– o facto de, no referido lugar, a criança ter contactos regulares com o seu outro progenitor, que continua a residir nesse mesmo lugar.

Em contrapartida, num processo como o que está em causa no processo principal, não se podem considerar circunstâncias determinantes:

– os períodos que, no passado, o progenitor que, na prática, exerce a guarda da criança passou com esta no território do Estado‑Membro de que este progenitor é originário, no âmbito das suas licenças laborais ou de épocas festivas;

– as origens do progenitor em questão, os vínculos de índole cultural da criança com este Estado‑Membro que daí decorrem e as suas relações com a sua família que reside no referido Estado‑Membro; e

– a eventual intenção do referido progenitor de, no futuro, se instalar com criança neste mesmo Estado‑Membro.”

Em complementação a essa decisão anterior, é útil acrescentar as seguintes considerações de decisões anteriores que não foram nela citadas:

“Com efeito, o ambiente social e familiar da criança, essencial para a determinação do lugar da sua residência habitual, é composto por diferentes factores que variam em função da idade da criança. Assim, os factores a tomar em consideração no caso de uma criança em idade escolar são diferentes daqueles a que se deve atender tratando‑se de uma criança que tenha terminado os seus estudos ou ainda dos que são pertinentes no caso de uma criança em idade lactente.”
“Daqui resulta que, num processo como o da causa principal, nem o comportamento ilegal exercido por um dos progenitores sobre o outro, que levou a que o filho do casal tenha nascido e resida, desde o seu nascimento, num Estado terceiro, nem a violação dos direitos fundamentais da mãe ou dessa criança, admitindo que estas circunstâncias se verificaram, permitem considerar que a referida criança poderia ter a sua residência habitual, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, num Estado‑Membro no qual nunca esteve.”

Como deveria ser traduzida a expressão residência habitual no Brasil?

A tradução de textos legais internacionais adotados internamente deveria sempre se adaptar à terminologia da lei nacional para garantir coerência à legislação nacional.

A doutrina de tipo coletiva, cultivada na redação de um tratado internacional, impõe a consciência da existência de terminologias autônomas, principalmente para as autoridades que aplicarão esta norma.

Porém, uma tradução literal alimentará inúteis confusões se forem usadas palavras que juridicamente possuem um valor no âmbito interno oposto à intenção do legislador internacional.

«Habitual Residence» é uma expressão inventada que a Conferência da Haia considerou como a mais próxima do conceito que se queria exprimir, levando em conta o significado considerado como comum/natural para essas palavras.

Se o texto original possui uma expressão inventada, uma tradução também pode (ou deve) inventar uma expressão que reproduz com maior fidelidade a vontade do legislador na relação com o próprio contexto local.

Não por acaso, na tradução da Convenção da Haia de 1980, no art, 13b, a tradução para o espanhol melhorou a expressão inventada “risco grave”, especificando que os perigos também deveriam ser graves:

b) existe un grave riesgo de que la restitución del menor lo exponga a un peligro grave físico
o psíquico o que de cualquier otra manera ponga al menor en una situación intolerable.
Convenção da Haia de 1980 em espanhol

Portanto, para garantir maior coerência ao texto internacional, visto que na legislação brasileira o conceito legal do termo «residência» se aproxima mais a ideia de simples morada (que pode ser fixa ou temporária) e o «domicílio» se aproxima a ideia de morada com ânimo estável, a expressão ao pré da letra «residência habitual» deveria ser traduzida como «domicílio habitual».

Muitos se preocupam em contestar o uso da palavra “sequestro” (que no final das contas não tem grandes diferenças fáticas com o termo “subtração”) na tradução oficinal da Convenção da Haia de 1980. Na verdade, o uso do termo «residência habitual» deveria receber uma atenção superior, pois é um erro muito mais grave e substancial na sua aplicação.

Uma solução melhor que esta seria mais radical e se espera que um dia aconteça, ou seja, que a legislação brasileira reveja o seu conceito de residência e domicílio, convergindo a sua definição e aplicação no dia-a-dia à realidade predominante no velho mundo.

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